Homilia de D. António Couto na Festa de Nª Sª dos Remédios
- O Evangelho deste Dia faz desfilar diante de nós uma admirável litania de nomes. Esta longa, lenta e bela melodia ensina-nos que, para chegarmos junto de Jesus e de Maria é necessário primeiro atravessar, com sentida emoção e repassada alegria, a lição de todo o Antigo Testamento, sentir o pulsar do coração dos «justificados» que o habitam, e entrar, juntamente com eles, nessa imensa peregrinação ou procissão de esperança que nos leva até «José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus» (Mateus 1,16). É uma teia de 44 nomes que nos leva a esse cume inundado de Luz, que nos encandeia e nos cega os olhos, e nos faz ver este mistério inefável e profundo, legível só à outra luz do coração.
- Admirável litania de nomes e gerações,/ longa, lenta e bela melodia,/ que nos ensina que para chegarmos junto de Jesus e de Maria, / é necessário subir a escadaria.
- Prosseguindo o Evangelho deste Dia, também se vê bem que «o essencial é invisível para os olhos», e que «só se vê bem com o coração». É assim que José, o justo, pensa em sair de cena, silenciosamente, amorosamente, para não atrapalhar ninguém, e deixar a cena toda livre para Deus. E é também assim que Deus desce na passividade de um sonho e entrega a José o que é, na verdade, coisa própria de Deus: a esponsalidade e a paternidade. Deus é o Esposo, o verdadeiro Esposo, tantas vezes dito nas páginas do Antigo e do Novo Testamento. Deus é o Pai, o verdadeiro Pai, tantas vezes dito nas páginas do Antigo e do Novo Testamento. É só por graça que José recebe Maria como esposa, e é só por graça que é o pai do Filho de Deus, nascido de Maria. Na verdade, diz bem Tiago, juntamente com o Apóstolo Paulo, que «toda a paternidade, como todo o dom perfeito, vêm do Alto, descem do Pai das Luzes» (Efésios 3,15; Tiago 1,17).
- Subamos, pois, mais alto. Desçamos, pois, mais fundo. Caríssimos pais e mães, os filhos que gerais e que vos nascem, são, antes de mais, vossos ou são de Deus? Dir-me-eis: este filho é nosso, fomos nós que o geramos, fui eu que o dei à luz, nasceu no dia tal. E eu pergunto ainda: sim, mas porquê esse, e não outro? É aqui, amigos, que entra o para além da química e da biologia. É aqui, amigos, que entramos no limiar do mistério, na beleza incandescente do santuário, onde o fogo arde por dentro e não por fora. É aqui que caímos nos braços da ternura de um amor novo, maternal, patente neste colo virginal de Nossa Senhora dos Remédios, que nenhuma pesquisa biológica ou química explicará jamais. Todo o nascimento traz consigo um imenso mistério. Sim, porquê este filho, e não outro? Porquê este, com esta maneira de ser, este boletim de saúde, este grau de inteligência, esta sensibilidade própria? Sim, outra vez, porquê este filho, e não outro, com outra maneira de ser, outro boletim de saúde, outro grau de inteligência, outras aptidões? Fica patente e latente que, para nascer um bebé, não basta gerá-lo e dá-lo à luz. Quando nasce um filho, é também Deus que bate à nossa porta, é também Deus que entra em nossa casa.
- A Bíblia é um livro cheio de nascimentos. Hoje é o dia de anos de Maria, o aniversário de Maria, que aqui, nesta sua Casa, saudamos de perto sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios. O humilde profeta Miqueias, saudou-a de longe, à distância de oito séculos no tempo, e de trinta quilómetros no espaço, lá do meio dos seus campos de Moreshet-Gat, a sua aldeia natal. Daí, levantou os seus olhos claros e carregados de verdade como árvores carregadas de frutos, e viu a cidade capital, Jerusalém, cheia de vícios, de vazio religioso, exploração dos pobres pelo rei e pelos poderosos. Miqueias denuncia esta situação escandalosa com uma linguagem duríssima. Escreve ele: Por acaso, não cabe a vós, chefes de Jacob, dirigentes de Israel, conhecer o direito, vós que odiais o bem e amais o mal, que arrancais a pele do meu Povo, lhe comeis a carne, cortando-a em pedaços e cozendo-a na panela, e lhe roeis os ossos?» (Miqueias 3,1-3).
- Visto isto, Miqueias levanta ainda mais os seus olhos muito puros, lancinantes, como estremes facas de dois gumes, e eis que vê nascer, ainda que à distância e em claro contraponto, um futuro novo, um mundo novo, que se condensa, não na figura de um rei, rico, viciado, explorador, mas no puro recorte de uma mãe que há-de dar à luz e amamenta um menino (Miqueias 5,2). Uma mãe que amamenta um menino. Este quadro, vê-o Miqueias, não a surgir da viciada Jerusalém, mas dos campos da humilde terra de Belém (Miqueias 5,1). Por isso também, não se atreve Miqueias a dar o título de rei (melek) ao senhor desse mundo novo, a raiar; em vez de rei, será um guia (môshel), que sabiamente irá à frente do seu Povo (Miqueias 5,1).
- Uma Mãe que amamenta um menino. Se vejo bem, estou mesmo a ver o quadro luminoso de Nossa Senhora dos Remédios. E compreendo melhor a razão porque a amamos tanto. Está ali, bem à vista, a Mãe e o Menino, mas também o coração,/ a respiração,/ a pulsação,/ a lalação,/ a aleitação./ Vida recebida,/ amada,/ mimada,/ acariciada./ Nunca enlatada.
- Não há no mundo braços tão fortes como os de uma Mãe. Da nossa Mãe. Por isso vimos aqui de dia e de noite. Respira-se aqui outra cultura, outro amor, outra alegria. Por isso vimos aqui, de noite e de dia, entregar a Maria as nossas dores e as nossas flores. Aqui encontramos a cura do amor verdadeiro e sem ruga. Daqui saímos sempre renovados, porque aqui sentimo-nos amados e embalados nos teus braços maternais, Mãe. Aqui, aqui, aqui começa o mundo, Mãe.
- Encarecidamente imploro ao Senhor Reitor deste Santuário de Nossa Senhora dos Remédios e à Real Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, que tudo façam para que este lugar nunca seja um des-lugar, mas seja cada vez mais, não apenas o ex-libris de Lamego, mas o mais belo lugar de Lamego, o mais terno lugar de Lamego, o mais aconchegado lugar de Lamego, o património mais comovido de Lamego. Os pobres, os nossos irmãos que doem, têm de encontrar aqui a sua Casa. E as esmolas e as ofertas aqui depositadas pelos nossos irmãos que doem e que dão têm de nos merecer um infinito respeito, e não podem ser gastas em qualquer coisa, de qualquer maneira, sem estremecimento nosso. Têm de ser obrigatoriamente gastas, exclusivamente gastas, escrupulosamente gastas em abraços maternais, sem outras contabilidades, calculismos ou exercícios financeiros. A Real Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios tem aqui a sua vocação e a sua missão mais nobre, mais pura, mais sublime, mais humana, mais divina. E nós, todos nós, que mais de perto sentimos o chão e o Céu deste Santuário temos todos a estrita obrigação de nos gastarmos também em abraços maternais.
- Encarecidamente imploro às queridas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, que são quem mais tempo passa neste Santuário e a ele mais se dedica, a graça de continuarem a dar-se de corpo inteiro, coração inteiro e tempo inteiro, a encher de amor este bocadinho de chão e de Céu. Eu sei que vós sabeis, melhor do que ninguém, como fazer deste espaço um regaço e um abraço.
- Senhora dos Remédios, Senhora da Embalação e da Aleitação, pega em nós ao colo, vela por nós, fica à nossa beira. É bom ter uma Mãe como companheira, médica e enfermeira.
Lamego, 08 de Setembro de 2012, Solenidade de Nossa Senhora dos Remédios
+ António José da Rocha Couto, Bispo de Lamego