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23.08.13

LEITURAS: Haruki Murakami - Kafka à Beira-mar

mpgpadre

HARUKI MURAKAMI. Kafka à Beira-mar. Casa das Letras. Alfragide 2012. 15.º edição. 602 páginas.

 

       Haruki Murakami é dos dos mais talentosos escritores/romancistas. Com uma criatividade fora de série, uma imaginação extraordinária. Cada livro publicado é a expressão de um verdadeiro artista das letras. Escreve com desenvoltura, cruzando diversas dimensões da vida, cultura popular, mitos e superstições, simbologia japonesa, na abertura ao Ocidente, música dos anos 70, 80, 90, grupos musicais, filmes, livros que fizeram sucesso, músicos clássicos. Abrange uma grande cultura geral, que passa para os leitores de forma integrada, espontânea, como se estivéssemos à mesa do café a falar deste e daquele tema, desta e daquela história, de determinado acontecimento, contando algo que nos aconteceu ou ao vizinho. Toda a linguagem se apresenta em Murakami com espontaneidade. Simples, acessível. Mesmo quando narra situações de outro mundo, surrealistas, parecem tão banais como abrir os olhos ao acordar, ou como respirar. Faz-nos entrar na história e às tantas parece banal o que propõe, como se todos soubéssemos do que se trata, ou fosse quase uma cusquice com o vizinho.

       "Kafka à beira-mar" é mais uma relíquia, uma obra prima do autor, com todos ingredientes para prender o leitor do princípio ao fim. Duas estranhas personagens que a história se encarrega de entrelaçar. O autor serve-se de recursos já habituais, lendas, crenças populares, expressões clássicas, história do Japão, na abertura ao Ocidente, e ao cristianismo, atores, filmes, cinema, músicas, carros, com descrições simples e acessíveis, ao correr da pena, tempo e história, destino, sons e ausência de sons, silêncio. Personagens estranhas e pessoas normalíssimas, comidas e pratos muito japoneses...

       Numa floresta um grupo de crianças, sem mais nem para o quê, desmaia. Não é um desmaio qualquer. Continuam a respirar normalmente, com os olhos fixos em algum ponto, sem pestanejarem. Só a professora não desmaia. Acordam e não se lembram de nada, é um vazio. Um dos meninos não acorda. Todos são submetidos a rigorosos exames, mas nada se descobre, nem os melhores médicos americanos, nem os médicos japoneses. Abertos dossiers confidenciais até muito depois da 2.ª guerra mundial, não permitem adiantar muito. Nakata fica em coma durante algumas semanas, sem dar de si, como que em outra dimensão. Quando acorda não sabe ler nem escrever; era um dos melhores alunos.

       Na atualidade, Nakata é um velho de sessenta anos, recebe um subsídio do estado, fala com os gatos, gosta de enguias, dedica-se a encontrar os gatos perdidos, em troca recebe mais alguns ienes, refeições, roupas. O imprevisto acontece. À procura de um gato, é conduzido a uma mansão por um cão que fala com ele, melhor, o dono fala através do seu cão. Para salvar o gato que procurava e um gato amigo, assassina Johnnie Walker, a pedido deste. Foi como forçado, parece não estar no seu corpo. Fica ensopado com sangue. Acorda num baldio, onde tinha ido procurar um gato, com a roupa limpa e já não consegue falar com os gatos. Narra o sucedido na esquadra mas o polícia de serviço considera-o tolo. Nakata avisa que no dia seguinte vão chover sardinhas e cavalas. Assim acontece. Mas ainda haverá também a chuva de sanguessugas, quando Nakata já vai a caminho de Shikoki, onde já está Kafka Kamura (Kafka é para esconder a verdadeira identidade), afinal filho de Johnnie Walker, que afinal é um famoso escultor (Koichi Kamura).

       O jovem foge de casa no dia do 15.º aniversário. Nem antes nem depois. Leva o que precisa. Vai para um sítio nem muito quente nem muito frio. Não precisa de levar muitas coisas, uma mochila às costas e dinheiro. Foi abandonado pela mãe, que com ela levou a sua irmã. O pai profetisa que ele ficará com a mãe e com a irmã. O destino do jovem é uma Biblioteca privada, que conta outra história de vida. Um amor que terminou na morte estúpida do noivo, quando ia levar comida a um colega manifestante, diante da universidade e tendo sido confundido com o líder da fação contrária. A mulher regressou, passados vinte anos, à casa dos pais dele, e todos os dias fica na Biblioteca. Tem um ajudante, que afinal é mulher, embora não pareça. E Kafka ficará no quarto antes reservado ao rapaz, filho dos proprietários e esfaqueado diante da universidade. Encontra-se aí um quadro, Kafka à beira-mar, que é também um canção feita pela dona-gerente da Biblioteca. Com quinze anos aparece ao jovem Kamura, deita-se com ele. Poderá ser a sua mãe, mas então ainda com quinze anos, mais ou menos.

       Um dia, o jovem Kafka Kamura acorda no meio do bosque com a camisola ensopada em sangue. Não se lembra de nada. Terá assassinado alguém. Tudo indica que foi ele, através de Nakata, do seu corpo e mente, que matou o próprio pai, mas não sabe...

       Há outros desígnios. Nakata terá que encontrar a Pedra de Entrada para compor a realidade. O que foi aberto tem de ser fechado...

       Kafka à beira-mar é um conto do maravilhoso, com personagens concretas, mas que em determinados momentos parecem ser transportados para outras dimensões.

       Nakata, além de fazer chover cavalas e sardinhas e sanguessugas, só tem metade da sombra, que desapareceu quando desmaiou e ficou em coma durante semanas. Com a pedra de entrada será que ele consegue ficar com a sua sombra completa? Veja como Murakami utiliza este recurso também noutros escritos, como por exemplo em O impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, em que o leitor de velhos sonhos, na cidade muralhada, deixa a sua sombra à entrada da cidade. A sombra acabará por morrer e ele ficará para sempre na cidade, pois ninguém sobrevive fora da cidade sem a própria sombra. A sombra resiste a acabará por abandonar a cidade sozinha, sem o seu dono, que fica na cidade e tem qe se retirar para o bosque, uma vez que a sua sombra não morreu...

       A BIBLIOTECA desempenha uma missão importante, neste como no livro citado anteriormente. É lá que conhece a mãe. É lá que a mãe morre para o encontrar na fronteira dos mundos, numa dimensão diferente onde se despede para sempre o fará regressar ao mundo para que ele se lembre dela, que entretanto destruir todas as recordações, mas desde que ele se lembre é quanto basta.

        Outro tema que será depois explorado no Fim do Mundo, quando fala da cidade muralhada (dentro do cérebro) e do bosque para onde vai quem ainda tem a respetiva sombra viva, pois na cidade só podem estar pessoas sem sombra nem coração. No bosque é preciso ter coração mesmo que não se tenha sombra. O coração guardas as recordações. O bosque é perigoso e desaconselhado. Em Kafa à beira-mar, a floresta, o bosque, é perigoso, quem se adentra nele pode perder-se para sempre, pode não achar o caminho de volta, passa a fazer parte do bosque. É lá que se encontram dois soldados que desertaram por altura da segunda guerra mundial e ficaram a guardar a entrada. Kafka é conduzido por eles. Entra. Outra dimensão. As pessoas não têm recordações. Fazem parte do tempo e das próprias recordações, do mundo envolvente. Quando muito lembram-se do dia anterior. Aí Kafka Kamura encontra de novo a jovem de 15 anos que lhe aparecia durante a noite, no quarto da Biblioteca. Aí encontra Saeki-san, afinal a sua mãe, afinal a rapariguinha de 15 anos, a gerente da Biblioteca que vem para se despedir para sempre. Vai ter que voltar antes que a entrada se feche. Mas para quê voltar se não tenho ninguém à espera. Regressas para viver a tua vida e te recordares de mim, diz-lhe a mãe.

       Uma das temáticas recorrentes é um certo pessimismo, ou resignação, que se vislumbra nas várias obras do autor, ainda que seja difícil uma análise definitiva. O que tem de ser tem muita força. Não adianta muito fugir, a vida há de orientar-nos para o nosso fim. De outra maneira não viveremos. Parece ser um desafio a viver, a viver bem, a aproveitar as ocasiões sem grandes lamentos, seguindo para a frente, agindo, tomando as próprias decisões, sejam elas minhas ou resultem da história em que me insiro. Com o destino, o tempo, e a ausência de tempo e de sons, a passagem para outra dimensão, a morte e a vida, o lado de cá e o outro lado. Viver em quanto é tempo. Quem passa a fronteira parece não querer regressar. Mas se ainda não é hora deverá regressar para cumprir a sua vida (evocação das experiência de quase morte?). Do lado de cá, e regressar com as suas recordações (e dos outros) mas para alterar o que tem de ser alterado, para um mundo novo.

"- Todos nós perdemos coisas a que damos valor. oportunidades perdidas, possibilidades goradas, sentimentos que nunca mais voltaremos a viver. Faz parte da vida. Mas dentro da nossa cabeça, pelo menos é aí que eu imagino que tudo aconteça, existe um quartinho onde armezanamos todas as recordações. E a fim de compreendermos os mecanismos do nosso próprio coração temos que ir sempre dando entrada a novas fichas, como aqui [na Biblioteca] fazemos. Volta e meia precisamos de limpar o pó às coisas, deixar entrar ar, mudar a águia das plantas. Por outras palavras, cada um vive para sempre fechado dentro da sua própria biblioteca..."


"Todas as pessoas precisam de um lugar onde possam pertencer..."


"Sentes o peso do tempo como um velho sonho ambíguo. Continuas sempre em movimento, tentando arranjar maneira de te esquivares. Porém, mesmo que vás aos confins do mundo não lograrás escapar-lhe. Mesmo assim, não tens outro remédio senão seguir em frente, até esse fim do mundo. Há algo que não se consegue fazer sem lá chegar".

       Há livros com 600 páginas que se leem num instante, com agrado, e muito mais facilmente que pequenos livros cuja história não flui. Os livros de Murakami não têm partes maçudas, envolvem-nos em milhentas estórias. Vale a pena ler este ou outro qualquer romance do Haruki Murakami. Se for para iniciar a ler este autor talvez fosse bom começar por "Em busca do Carneiro Selvagem" ou "Dança, Dança, Dança", ou o "Elefante evapora-se", ou "Sputnik, meu amor", ou para melhor conhecer o autor e a sua escrita, "Auto-retrato enquanto corredor de fundo".

       Kafka à beira-mar é uma leitura leve, empolgante, engenhosa, vicia...

22.08.13

LEITURAS: Haruki Murakami - 1Q84

mpgpadre

HARUKI MURAKAMI. 1Q84. Casa das Letras. Alfragide. Livro 1 - 2011. 492 páginas; Livro 2 - 2012; 436 páginas: Livro 3 - 2012, 504 páginas.

       Para quem gosta de Haruki Murakami, não interessa de todo o número de páginas, de tão empolgantes que sãos as histórias e os mundos, o oriental e o ocidental, o budismo e o cristianismo, o mundo real e concreto e o mundo virtual, do sonho, ou um segundo mundo que se passa num determinado tempo e lugar e que dá acesso a um mundo que corre em paralelo, com implicações no regresso a este mundo.

       Duas personagens fazem desenrolar a história. Tengo, professor de matemática, aspirante a escritor famoso, trabalha também na revisão de outras obras, nomeadamente a Crisália de Ar, escrita por uma jovem filha de pais que integraram uma seita religiosa que esmaga a liberdade e em que as vítimas de sempre são as mulheres sujeitas a maus tratos. Aomame, é uma jovem com a mesma idade de Tengo. É assassina profissional, mata fazendo parecer que é de morte natural, acabará por matar o líder da Seita, ainda que este fosse considerado como Imortal. Fria, quase sem coração. É também professora de artes marciais.

       No desenrolar da história, os dois personagens vão-se aproximando, enredados na mesma trama que os conduz à Seita religiosa, sendo aliás procurados pelos sequazes da organização, da qual pouco se conhece, impenetrável, que fazem desaparecer até os seus membros, sem vestígios, ainda que a Organização tenha um rosto jurídico, que paga impostos, tem sede, tem representantes legais.

       Pelo meio vão aparecer muitas outras personagens, com a beleza extraordinário com que são pintadas por Murakami, há feios, bonitos, altos, baixos, gordos, inteligentes, estúpidos, homens, mulheres, pessoas boas, pessoas más. Uma mulher, já anciã que acolhe mulheres maltratadas.

       Tengo e Aomame encontraram-se na escola, como ela pertencia às testemunhas de Jeová, sempre foi colocada de lado, por algumas razões que lhe eram impostas pelos pais e pela religião que a expunham ao ridículo. Tengo, rapaz sério, inteligente e aplicado, não segue a corrente, mas também não teve a coragem para avançar...

       Mais à frente hão de cruzar os seus destinos, e os seus mundos. Não podem deixar escapar a oportunidade. Mas vai demorar tempo, paciência, vigilância, prudência. A Crisália de Ar, faz como que nascer duas Aomames, a mesma pessoa desdobrada em dois, para viver em dois mundos separados, dimensões diferentes.

       O terceiro volume, aparece outra personagem: um advogado Ushikawa. Aceita todos os casos que sejam sujos, defende tudo o que tenha a ver com a Organização. Metódico. Feio, desproporcional. Medonho. Assustador. Com facilidade recorre à ameaça, à insinuação, procurando gerar medo ou mesmo pânico, chantagista.

       Duas LUAS, uma normal e outra verde. Nem todos veem a duas luas. A Crisália de Ar faz a descrição pormenorizada da lua verde, e do Povo Pequeno, em que os seus habitantes querem vir para o mundo real... Aqueles que veem a Lua compreendem que estão num mundo diferente, ou no mesmo mundo, mas com vivência diferentes. Ano de 1984. Ano de 1Q84, é outro ano distinto, paralelo, as vivências no mundo paralelo têm consequências no mundo concreto...

       Uma trilogia de extraordinário encanto. Como toda a escrita murakamiana, leve, descontraída, natural, faz-nos entrar dentro da história e das personagens, surrealista quanto baste, descreve outros mundos como algo que fizesse parte do dia a dia. Mais uma vez as milhentas estórias que preenchem e cruzam a trama principal, músicas, livros, bares, cinemas, sentimentos, organizações clandestinas, seitas religiosas, abuso de poder, controlo de informação, secretismo, violência doméstica, escravização das mulheres... temas que surgem com a maior das naturalidades mas que nos fazem refletir. A civilização japonesa, com a sua identidade, as suas superstições, os seus símbolos, mas a entrada de influências estrangeiras, ocidentais, num mundo cada vez mais globalizado.

       Mais um leitura empolgante. Lê-se de fio a pavio. Boa leitura.

21.08.13

LEITURAS: Haruki Murakami, impiedoso País das Maravilhas...

mpgpadre

HARUKI MURAKAMI. O impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo. Casa das Letras. Alfragide 2013. 570 páginas.

       Murakami tem sido apontado como premiável ao Nobel da Literatura. É um dos mais criativos romancistas da atualidade. Pelo menos na minha maneira de ver e de ler. Os seus livros provocam a mente, imaginativos, inseridos na civilização do nosso tempo, com as raízes japoneses, origem do autor, com muitas referências à cultura ocidental, o autor vive nos EUA, com cruzamento de diversas influenças. Música. Jazz. Anos 70, 80, 90. Cinema. Filmes. Livros de grandes autores, por vezes com pequenas resenhas e comentários ao conteúdo ou ao autor. Cidades. Países. Japão. Tradição. Crenças. Ditados populares. Superstições. Símbolos culturais e religiosos. A noite. A mentalidade atual. Deteta-se a crítica à resignação, ao deixar-se levar pela onda, deixando-se vencer pelas circunstâncias. Em muitas histórias narradas por Murakami, aparecem personagens comuns, vulgares, banais, humanas, com qualidades e defeitos, por vezes indecisos, com dúvidas, hesitantes, por vezes deixando que o tempo decorra e corra como rio, sem grandes sobressaltos. O rio encontrará o caminho para seguir. Basta deixar-nos ir na corrente. Se queremos remar em sentido contrário por vezes não é possível, acabaremos por ser forçados a desistir e arrastados ainda com mais violência pela corrente.

       Obviamente, quem recomenda uma leitura é porque gosta, porque leu com agrado, porque parece ser um livro oportuno, trazer uma mensagem interessante. Diria que tudo isso é verdade. Mas ler Murakami é mergulhar em água fresca quando o calor aperta, é sentir a aragem no rosto num dia de verão. Lê-se com enorme vontade de avançar páginas, descobrir o que vem a seguir, a trama que se desenrola. Uma característica muito murakamiana é o entrelaçar de história, duas ou três principais, mas depois com muitas outras histórias, imagens, comparações, máximas, trocadilhos. A realidade e a transcendência, os sonhos, a sombra, os mitos, as grandes descobertas da humanidade, a imaginação criadora de factos e de realidades, realidades que se cruzam fora e dentro de nós, histórias que caminham paralelas e que se cruzam na mente, na imaginação e no sonho. Não se cruzam na realidade. Por vezes é perigoso que os acontecimentos do dia estejam no sonho, e que quando acordados se realizem, sem tirar nem por, o que se sonhou. Por vezes, é necessário que haja o encontro entre o sonho e a realidade, entre o mundo concreto e o virtual.

        Duas histórias caminham em paralelo. O impiedoso mundo das maravilhas. Um mundo moderníssimo, controlado, a rondar a ficção científica, o personagem vê-se numa missão da qual não pode fugir. Na sua cabeça foi implantado um chip, numa experiência científica, o cérebro quase como um computador avançado. Programado para fazer o que tem a fazer. Nada mais, nada menos. Outros não sobreviveram à operação de retirar o cérebro, implantar o chip e voltar a colocar o cérebro no lugar. Aparecem os Programadores, fazem parte do Sistema, do Governo. E existe a espionagem, o privado, os Simióticos, sempre a tentar roubar os conhecimentos, as técnicas. Se os Programadores são absorvidos pela Fábrica, tornam-se Simióticos. São entidades muito secretas, criam defesas virtuais cibernéticas. O narrador deste mundo é conduzido a um cientista famoso, já trabalhou no Sistema, e quando já não precisava, deixou de ser Programador. É capaz de suprimir o som. Tem a máquina para alterar o mundo. O narrador é a chave. E a chave para penetrar no cérebro é "Fim do mundo", afinal o título da outra história. Nesta, o narrador parece acabar por ficar com a rapariga da Biblioteca, poderá vir a ser, mas na história ele segue caminho, até um dia, quem sabe.

       O Fim do Mundo, é uma cidade muralhada. O narrador quando entra na cidade fica sem a sua sombra. Fica ao cuidado do Guardião. Também aqui cada um tem a sua missão. O Guardião, abre e fecha a porta. De manhã os animais, os unicórnios entram na cidade. No fim do dia saem para dormir fora das muralhas. No inverno, o Guardião tem também a missão de queimar os animais que morrem durante a noite. O alimento só pode ser encontrado dentro das muralhas. Existe também o bosque mas é muito perigoso. O narrador é o leitor de velhos sonhos, presos nos crânios dos unicórnios. Também no País das Maravilhas, o narrador recebe o crânio de um unicórnio de onde brota uma luz. O leitor dos sonhos é picado nos olhos, traz sempre óculos de sol, e só deve sair à noite. A Biblioteca é o seu lugar de trabalho. A ajudante prepara tudo. Ela perdeu a mãe. Ficou com o coração mas sem a sombra. Com o coração teve que ir para o bosque. O leitor dos velhos sonhos, vai visitar a sua sombra, ao cuidado do Guardião. A muralha observa tudo. É inviolável. Também aqui o narrador quer ficar com a rapariga da Biblioteca. Das duas uma, recupera a sombra e foge. A sombra prepara a única saída possível, pelo grande lago. Como o inverno chegou, a sombra quase morreu e o Leitor dos sonhos têm que a levar às costas. Se fugir, ficará sem a rapariga da Biblioteca, e terá de volta a sombra. Como ainda tem coração e a sombra se foi embora sem ele, então tem que abandonar a cidade e ir viver para o bosque. Na cidade só ficam as pessoas cuja sombra já morreu e que ficaram sem coração... Vai-se a ver e a cidade é uma criação na mente do narrador, o leitor dos velhos sonhos...

         A BIBLIOTECA desempenha uma missão importante. Num outro livro que recomendaremos, Kafka à beira-mar, a Biblioteca é parte essencial onde decorre a história. A Biblioteca guarda recordações, a História e muitas histórias. E a história é fundamental para que as pessoas e as nações sobrevivam à morte. É um lugar onde se busca informação e conhecimento. Neste livro aparece a Biblioteca nas duas histórias. No impiedoso mundo das maravilhas, o narrador vai recolher informações e trava conhecimento com uma jovem quem quem poderá vir a ficar. No fim do mundo, na Biblioteca estão guardadas as recordações das pessoas, cuja sombra morreu e que ficaram sem coração, sem recordações. Na Biblioteca está a mulher que poderá ficar com o narrador, o Leitor dos velhos sonhos, para isso ele terá que recolher as recordações que formam o coração da sua ajudante... Em Kafka à beira-mar é na biblioteca lá que Kafka Kamura encontra a Mãe e onde estão muitas recordações. No regresso ao novo mundo ele levará da Biblioteca o quadro e a canção Kafka á beira-mar, preservando a memória, as recordações, da mãe. A Biblioteca poderá ser um dos lugares onde volta no futuro. A Biblioteca confunde-se com a vida...

        Outro tema é bosque e o poder que o envolve, a superstição. Em Kafa à beira-mar, a floresta, o bosque, é perigoso, quem se adentra nele pode perder-se para sempre, pode não achar o caminho de volta, passa a fazer parte do bosque. Em fim do mundo as pessoas do bosque simplesmente não podem regressar à cidade, pois têm coração e têm recordações, ainda que não tenham a sua sombra...

     Mais uma história de génio. Cada personagem que intervém é descrita de forma completa, serena, não há lugar para heróis, todos têm virtudes, e defeitos, coisas que fizeram e outras que deixaram acontecer, têm vontade, mas por vezes desistem dos sonhos que tinham, deixam a sombra mas não o coração. Curioso também o facto das pessoas se deixarem levar pela corrente. Na cidade todos puxam para o mesmo, tentando que o leitor de velhos sonhos desista da sombra, deixando-a morrer, e para ficar sem coração... e ele acabrá por desistir de seguir para o mundo real com a sua sombra, mas não desiste do seu coração: fica a ajudante...

       A narração de factos, de estórias, de personagens, é tão fluente e natural que parece que estamos inseridos num diálogo corriqueiro. Extraordinário...

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