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Escolhas & Percursos

...espaço de discussão, de formação, de cultura, de curiosidades, de interacção. Poderemos estar mais próximos. Deus seja a nossa Esperança e a nossa Alegria...

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29.06.24

Deveis também sobressair nesta obra de generosidade

mpgpadre

       1 – Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos, como claramente o afirma Jesus (cf. Mc 12, 18-27), é Deus de Abraão, de Isaac e Jacob, de Moisés e Elias, de Isaías e Jeremias, é o Deus de nossos pais (cf. Atos 3,13), de João Batista e de Jesus Cristo. É a vida em abundância que Deus quer para aqueles que criou por amor e cuja vinda ao mundo do Seu Filho Jesus Cristo o explicita: Eu vim para que tenham a vida e a vida em abundância (Jo 10,10). É o bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas, que carrega com as mais débeis aos ombros e que as conduz às melhores pastagens.

       A primeira leitura, do livro da Sabedoria, mostra esta certeza inabalável:

"Não foi Deus quem fez a morte, nem Ele Se alegra com a perdição dos vivos. Pela criação deu o ser a todas as coisas, e o que nasce no mundo destina-se ao bem. Em nada existe o veneno que mata, nem o poder da morte reina sobre a terra, porque a justiça é imortal. Deus criou o homem para ser incorruptível e fê-lo à imagem da sua própria natureza. Foi pela inveja do Diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na aqueles que lhe pertencem".

       Como é que continua a perpassar a ideia que Deus é terrífico, sequioso de vingança, de sacrifício dos homens e das mulheres, que é um vigilante justiceiro, sempre pronto para destruir, para castigar, para exigir?!

       O texto inspirado da Sabedoria não poderia ser mais clarificador. Deus não se alegra com o sofrimento das pessoas. Quantas vezes o dizemos: Ele sofreu, logo temos de sofrer com paciência?! É urgente modificar o paradigma: Ele amou, até ao fim, gastando-Se por inteiro. "Amo, logo existo" (Pe. João André, Da minha janela). De que forma, hoje, aqui e agora (hic et nunc), posso amar melhor? Tudo o que Deus criou e nos confiou destina-se à vida e ao bem. Somos imagem e semelhança de Deus, pertencemos-Lhe. A nossa natureza liga-nos à eternidade, à vida em Deus.

       2 – Compreende-se, portanto, que a missão de Jesus seja salvar, envolver, curar, reabilitar, incluir e inserir na comunidade dos filhos de Deus, promover o bem, a verdade, a justiça, a conciliação entre todos, a solidariedade, a partilha efetiva e concreta de bens materiais e espirituais. A defesa dos mais desfavorecidos não procura desfavorecer os demais mas criar iguais oportunidades para que todos possam viver em abundância, sentindo-se filhos e herdeiros de Deus, irmãos, família, incluídos, parte importante da sociedade atual, responsáveis pelo mundo a que pertencem. Por conseguinte, muitas vezes se refere, no ponto concreto da relação entre pessoas e povos, que só é possível diálogo e concertação entre iguais, e não entre uma pessoa/povo credor e uma pessoa/povo sujeito de ajuda. Aí haverá domínio e imposição!

       Enquadram-se nesta dinâmica as curas narradas no Evangelho de São Marcos:

“Jesus olhou em volta, para ver quem O tinha tocado. A mulher, assustada e a tremer, por saber o que lhe tinha acontecido, veio prostrar-se diante de Jesus e disse-Lhe a verdade. Jesus respondeu-lhe: «Minha filha, a tua fé te salvou». Ainda Ele falava, quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: «A tua filha morreu. Porque estás ainda a importunar o Mestre?». Mas Jesus, ouvindo estas palavras, disse ao chefe da sinagoga: «Não temas; basta que tenhas fé»…

Ao entrar, perguntou-lhes: «Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu; está a dormir». Riram-se d’Ele. Jesus, depois de os ter mandado sair a todos, levando consigo apenas o pai da menina e os que vinham com Ele, entrou no local onde jazia a menina, pegou-lhe na mão e disse: «Talita Kum», que significa: «Menina, Eu te ordeno: Levanta-te». Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar, pois já tinha doze anos”. 

       No primeiro caso, uma mulher há muito afastada do convívio saudável, cujas maleitas físicas não lhe permitiam viver em sociedade, e integrar-se na vivência religiosa. A sua doença é também espiritual e "social". Vê-se obrigada a sobreviver. Jesus cura-a e integra-a. Doravante estará como igual na família e nas relações sociais e religiosas.

       No segundo caso, a certeza que Jesus vem salvar, redimir, devolver-nos a uma vida nova, pré-anunciada na ressurreição desta menina, ao mesmo tempo que dá tempo e vida a esta família. Ele está definitivamente do nosso lado. Caminha connosco. Também está connosco quando sofremos.

 

       3 – A vocação do cristão é seguir Jesus Cristo, imitá-l'O, acolhendo a vontade de Deus, fazendo com que seja o verdadeiro alimento, prosseguindo para se tornar perfeito e misericordioso como Deus, incluindo, sendo bênção para os outros, em palavras e em gestos, pela boca e pela vida, fazendo o que está ao seu alcance para acudir a todos, dando o melhor de si, comprometendo-se desde logo com as pessoas que Deus colocou à sua beira. Somos cristãos também em casa, ou sobretudo em casa, com a família. Como nos lembrava o Pregador da festa de São João, Pe. Giroto, por vezes somos pouco tolerantes e compreensivos para com aqueles estão mais perto, a família. Mas aí começa o testemunho e a veracidade da nossa fé e o seguimento de Jesus Cristo, prosseguindo para a vizinhança.

       Reflitamos, atenta e demoradamente, nas palavras do apóstolo São Paulo:

"Já que sobressaís em tudo – na fé, na eloquência, na ciência, em toda a espécie de atenções e na caridade que vos ensinámos – deveis também sobressair nesta obra de generosidade. Conheceis a generosidade de Nosso Senhor Jesus Cristo: Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa, para vos enriquecer pela sua pobreza. Não se trata de vos sobrecarregar para aliviar os outros, mas sim de procurar a igualdade. Nas circunstâncias presentes, aliviai com a vossa abundância a sua indigência para que um dia eles aliviem a vossa indigência com a sua abundância. E assim haverá igualdade, como está escrito: «A quem tinha colhido muito não sobrou e a quem tinha colhido pouco não faltou»".

       Mastiguemos bem, ruminemos estas palavras, abrindo-nos para o compromisso sério com os outros. É aqui que podemos e devemos intrometer-nos na vida dos outros. Somos guardas dos nossos irmãos. Somos corresponsáveis pela sua felicidade. A intromissão na vida alheia, para o cristão, vale apenas e quando há um claro empenho por ajudar, sem expor, por promover uma vida condigna e humana. Não podemos ser Abel nem Pilatos, não lavamos as mãos, não nos descartamos dos outros. É com os outros que vamos até ao Céu de Deus.


Textos para a Eucaristia: Sab 1, 13-15; 2, 23-24; 2 Cor 8, 7.9.13-15; Mc 5, 21-43.

01.07.17

Se alguém der de beber... não perderá a sua recompensa.

mpgpadre

1 – Jesus pede-nos exclusividade. Como a própria palavra sugere, exclusividade exige exclusão. «Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim, não é digno de Mim. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não é digno de Mim».

Vamos perceber que a exclusividade de Jesus é inclusiva. Ao escutarmos Jesus ficamos arrepiados. Quem amar mais a mãe ou o pai, o filho ou a filha, ou a própria vida não pode segui-l'O! Como? Deixar para trás a família, os amigos, renunciar à própria vida?

 

2 – Ao longo da Sua vida e de maneira mais clarividente na Sua Paixão e Morte na Cruz, Jesus mostra a Sua grande ligação ao Pai. É uma intimidade de todas as horas. Se a Sua vida é uma oração constante, Jesus reserva tempos específicos para uma maior proximidade com Deus: antes da vida pública retira-Se em oração para o deserto; antes de escolher os apóstolos passa a noite em oração; antes do processo da Sua morte, retira-Se para o horto das Oliveiras para orar; na Cruz mantém um diálogo vivo com o Pai: Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?! Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito.

É percetível na vida de Jesus o Amor primeiro e único: o Pai (de todas as horas). Mas é também dessa forma que Ele tem tempo e disponibilidade para as pessoas, sobretudo as mais frágeis, pois não desperdiça nem forças nem tempo com intrigas, com lamentações, com suspeição, com estratégias para Se afirmar ou para assegurar poder ou vantagem sobre os demais.

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3 – A prioridade e a precedência de Deus liberta-nos da ansiedade e da perda definitiva, pois Ele nos garante a vida. Aqueles que perdemos, pela vida, Ele os guarda na eternidade. Reconhecermos que não somos deuses, ou que alguém ou alguma coisa o é, faz-nos relativizar as perdas e os insucessos, mas também que o céu não é definitivo na vida histórica, pelo que estamos a caminho. Se acharmos que somos deuses então não poderemos repousar nem equilibrar o nosso cérebro, temos que resolver tudo. Se colocarmos essa esperança em alguém vamos exigir-lhe que resolva tudo o que queremos.

Afinal o desafio de Jesus não menospreza, de todo, a família ou a vida como dom e tarefa, mas recoloca tudo no seu lugar, a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Jesus dá-Se por inteiro ao Pai. É nessa medida que Se entrega ao Pai por nós e, por, amor nos eleva para Deus.

Seguir Jesus implica toda a nossa vida, a vida toda, em todos os seus aspetos. Somos cristãos em qualquer situação, não apenas quando nos convém, nos dá mais jeito ou quando temos mais tempo. É dessa forma que ganhamos a vida, perdendo-a, gastando-a, dando-lhe sentido e sabor pelo serviço, pelo cuidado, pela descoberta vocacional. É dando que se recebe, é dando que se acolhe a vida como dom alegre. Quem resguarda a sua vida por medo ou para não se incomodar, acabará por morrer sem ter vivido!

 

4 – A referência é Jesus. Segui-l'O para gastar a vida como Ele, a favor de todos. Com efeito, lembra-nos São Paulo, fomos batizados em Cristo, sepultados na Sua morte, para com Ele ressuscitarmos. Se morremos com Cristo, vivamos então com Ele uma vida nova.

Seguir Jesus não servirá nunca para justificar a indiferença ou o descarte a que botamos as pessoas. Seguir Jesus com a nossa vida inteira faz-nos incluir os pais, os filhos, os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalhos, aqueles de quem não gostamos tanto e sobretudo as pessoas mais fragilizadas, pela doença, pela pobreza, pela solidão…


Textos para a Eucaristia (A): Ex 19, 2-6a; Sl 99 (100); Rom 5, 6-11; Mt 9, 36 – 10, 8.

 

REFLEXÃO DOMINICAL COMPLETA na página da Paróquia de Tabuaço

e no nosso outro blogue CARITAS IN VERITATE

03.04.17

Leituras: SUSAN SPENCER-WENDEL - ANTES DO ADEUS

mpgpadre

SUSAN SPENCER-WENDEL, com Bret Witter (2013). Antes do Adeus. Lisboa: Editora Pergaminho. 384 páginas.

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Susan Spencer-Wendel é uma mulher adulta, 44 anos, jornalista reconhecida, satisfeita da vida, casa, mãe de três filhos. A vida é uma correria. A mão esquerda começa a ficar paralisada e começam as interrogações, os médicos, os exames e a negação do que começa a ser óbvio: esclerose lateral amiotrófica (ELA). O diagnóstico é uma sentença de morte, pois é uma doença terminal, três a cinco anos de vida, não há cura nem forma de retardar o seu avanço.

Que fazer diante de uma notícia tremenda? A autora vai-nos dizendo. Uma fase de negação. Mas chega o momento que não há como fugir à inevitabilidade da doença. O corpo começa a deixar de funcionar, os comandos (cerebrais) não são correspondidos. Há consciência, mas o músculos vão atrofiando e deixando de obedecer e de funcionar. Até articular palavras se torna uma luta gigantesca.

É conhecida a expressão de Tolstoi: as famílias são iguais, as famílias tristes sofrem cada uma à sua maneira. Susan opta por viver e viver feliz, procurando criar memórias para os filhos, para o marido e para os amigos.

O seguro de vida permite-lhe pagar a hipoteca da casa, viajar como sempre gostou de fazer, com a melhor amiga, Nancy, (para ver a aurora boreal), com o marido, numa espécie de segunda lua de mel, ir com a filha, de 14 anos, a Nova Iorque e vê-la provar um vestido de noiva, pois já não estará por cá quando ela casar, vai proporcionando aos filhos os seus pedidos.

Entretanto decide escrever, enquanto é possível. Chega um momento que escreve apenas com um dedo num iphone, mas escreve, dedicando tempo. É um legado para os filhos, para o marido, para a famílias, para os amigos. Não se revolta. Procura viver cada momento, numa atitude zen, aceitando o que tem que ser, o que não está ao seu alcance modificar. Claro que sofre, chora, por ver o mundo avançar, os filhos a crescerem, certa que não estará cá para os ver crescer, querer fazer as coisas e não poder, a dependência de todos e em tudo. Chora. Mas não perde tempo a lamentar-se.

Adotada, procura as suas raizes, para apaziguar o seu passado e ligar-se, ao marido e aos filhos, à família biológica, nomeadamente à sua ascendência grega.

"Antes do Adeus tem momentos profundamente tristes - trata-se, afinal, de uma despedida -, mas sem um traço de amargura ou de raiva. Em cada página, sente-se otimismo, a alegria de viver e o sentido de humor de uma mulher grata pela vida. Um livro sobre a morte, mas cheio de vida. Um livro que nos recorda que temos sempre a opção de sorrir. E que, como ensina a autora, «cada dia é melhor se for vivido com alegria»" (contracapa).

Outro dos aspetos bem vincados ao longo de todo o livro, é a sua fé em Deus. Os pais (adotivos) são batistas, a autora nem por isso, mas acredita em Deus, acredita que se irá encontrar com o Pai biológico já falecido. E que o fim não será definitivo.

"Acenda uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão".

"Acredito em Deus. Acredito em forças que nos transcendem de prodígios que escapam ao entendimento humano".

"Tomei a resolução de escrever sobre a força e não sobre a doença, sobre a alegria e não sobre o desespero".

"As minhas capacidades vão-se desprendendo do meu ser como uma medalha se desprende de um fio".
"Desde o diagnóstico, os estados depressivos tornaram-se menos frequentes. Desde que aceitei a minha condição, a angústia aproxima-se de mim ao de leve, como uma borboleta, e poisa silenciosamente como as borboletas poisam nas plantas à volta da cabana. Observo os seus rodopios, admiro a sua complexidade, sinto o seu peso por um breve instante, e depois... passa! Esa tristeza tem uma beleza intrínseca que me faz sentir sempre viva, e isso ainda me interessa, ainda é importante para mim".
"Regozija-te com o que tens e com a forma como as coisas são. Quando te deres conta de que não há nada em falta, o mundo inteiro será teu".
"Removendo a necessidade, removo também o sofrimento".
"Há que aceitar a vida conforme ela se desenrola. É importante que sonhemos e nos esforcemos por alcançar os nossos sonhos, mas também há que aceitar. Não faz sentido forçarmos o mundo a ser aquele que sonhámos. A realidade é muito melhor que isso".
"Não faz qualquer sentido ansiar por algo inalcançável, pois esse é o caminho direto para a loucura".
"Procurem-me nos vossos corações, meus filhos. Sintam-me aí e sorriam... procurem-me nos ocasos... sei que o meu fim está próximo, mas não desespero".
 
A autora terá morrido em 4 de junho de 2014.
(Informações colhidas na Internet)
 

16.02.17

Leituras CORMAC McCARTTHY - A ESTRADA

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CORMAC McCARTTHY (2010). A Estrada. Lisboa: Relógio d'Água. 192 páginas.

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Um livro que se lê de fio a pavio, sem respirar, com o fôlego a exigir que se continue, pela trama, pela beleza da escrita, pelo conteúdo. Vamos por partes. Há livros que nos caem nas mãos. Há livros que temos de ler. Há livros que encontramos por acaso. Há livros que sugerimos aos outros porque, para nós, são belos, importantes, com um conteúdo relevante, por constituírem literatura premiável, por serem arte.

Na leitura de alguns comentários sobre o filme/romance Silêncio, livro de Shusaku Endo, adaptado ao cinema por Martin Scorsese, encontramos esta crónica de Henrique Cardoso, "Ser cristão no coração da trevas", crónica semana na Rádio Renascença. «No meu processo de conversão, o romance “A Estrada” foi fundamental. Costumo dizer a brincar que este livro de Cormac McCarthy é o meu quinto evangelho. Na altura (2009), já não era ateu e estava naquele centrão teológico chamado agnosticismo, que é uma forma chique de dizer ainda-não-tinha-coragem-para-dar-o-passo-em-direcção-de-Deus».

O cronista comentava o filme de Martin Scorsese, Silêncio, adaptado a partir do romance de Shusaku Endo, que já por aqui recomendei (SHUSAKU ENDO - SILÊNCIO).

A ligação do livro "A estrada" ao filme: «O livro parte desta pergunta: o que fazer no coração das trevas? Num mundo apocalíptico sem qualquer esperança, num mundo que parece o local da batalha onde Lúcifer venceu Gabriel, como é que mantemos a nossa decência? Como é que mantemos a nossa moral num mundo que nem sequer é imoral mas sim amoral, tal é a indiferença perante o mal? A própria ideia de “moral” é concebível num mundo onde até o canibalismo se torna normal? Quase dez anos depois, o filme “Silêncio” de Martin Scorsese remete-me de novo para essa questão. Só que agora, já na condição de convertido, coloco a palavra “fé” onde antes tinha a palavra “moral”. Como é que se serve Deus e Jesus a partir do coração das trevas? A própria ideia de “fé” faz ali sentido?».

Foi nesta altura que pessoalmente achei crucial ler o "Silêncio" mas ler também "A Estrada". Acabada a leitura de um, logo iniciei o outro.

É um daqueles livros memorável. Um homem com o seu filho, ao longo de uma estrada (sem fim), a procurar sobreviver, entre escombros, encontrando pessoas más (algumas serão boas), um mundo destruído, ardido, desumano, onde a vida escasseia, e assim também os alimentos... vivendo um dia de cada vez e uma noite de cada vez, em sobressalto. O pai que tudo faz para proteger o filho, num diálogo vivo em que sobrevém a vida e os sentimentos. No filho assoma a bondade, a inocência. No pai o pragmatismo, o instinto de sobrevivência. Apoiam-se um ao outro. Quando falta tudo e também a esperança parece desaparecer, apoiam-se um ao outro, até ao fim... O perigo de um morrer pode significar a morte do outro. O pai não deixará que o filho morra e se morrer também ele acabará com a sua vida, são o mundo um do outro.

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Fome, frio, medo, "A Estrada é a história verdadeiramente comovente de uma viagem, que imagina com ousadia o futuro onde não há esperança, mas onde um pai e um filho, 'cada qual o mundo inteiro do outro', se vão sustentando através do amor... é uma meditação inabalável entre o pior e o melhor de que somos capazes: a destruição última, a persistência desesperada e o afeto que mantém duas pessoas vivas en«frentando a devastação total" (contracapa).

Hei de gostar de ver o filme...

10.01.17

Leituras: Marta Arrais - DESCALÇA AS TUAS FERIDAS

mpgpadre

MARTA ARRAIS (2016). Descalça as tuas feridas. Crónicas para todos os dias. Lisboa: Paulus Editora. 136 páginas.

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Descalça as tuas feriadas é um daqueles títulos de excelência. É como a água fresca em pleno Verão, brisa suave que alivia qualquer cansaço, leitura envolvente que nos conduz ao nosso interior, ao que somos, aos dons recebidos, às forças que ainda há para gastar; leva-nos a perscrutar a vida e o sofrimento dos outros, valorizando o essencial, a vida, o amor, o serviço, a alegria. Marta Arrais é transparente, simples, acessível, profunda. Toca diversos temas e diria, toca o coração de quem a escuta (ou lê). Enternecedora, desafia, interpela, questiona, faz-nos refletir.

Primeiro o contacto com os seus textos o sítio iMissio. Já tínhamos lido e partilhado algumas das suas reflexões. Depois o contacto com o livro. Na livraria da Diocese de Lamego, Gráfica de Lamego, peguei no livro e, como noutras ocasiões, perguntei à responsável, Paula Magalhães, se recomendava, se valia a pena. Também ela já tinha perguntado mas não lhe souberam responder. Voltei a olhar para o título, para o nome da autora e para a contracapa. E fez-se luz: acho que já li algumas reflexões, se for a autora dessas reflexões (do iMissio) então vale a pena. Vou levar. Fiquei convencido que era a autora das (tais) crónicas do iMissio e deixei a certeza à responsável que, sendo quem julgava ser, valeria bem a pena a compra e sobretudo e a leitura. E cá estou a confirmar o que então afirmei.

É um livro que se lê bem. Algumas das crónicas podem ser lidas no sítio sugerido: iMISSIO ou também na página criada (julgo eu) para secundarizar a publicação deste livro: MARTA ARRAIS, o Barco de Sonhar. Mesmo tendo lido algumas das crónicas e podendo ler outras, prefiro ter o livro, ler, sublinhar, rever os sublinhados.

E por falar em sublinhados, aqui ficam alguns:

"É a alegria que precisa de nos engordar! A vontade de fazer impossíveis, de gritar que não há dor que valha a pena. A tua dor não vale a pena. Vai encolher-te até deixares de saber quem és. Vai mirrar-te os horizontes e deixar-te sozinho. O colo da dor é muito frio. O da alegria. É nesse colo que deves enxugar as tuas lágrimas..."
"O amor sabe a pão acabado de sair do forno e é impossível que não queiramos empanturrar-nos dele. Mas o amor não chega se os que amamos não merecerem a nossa esperança. Merecem a nossa outra face aqueles que transformam a nossa esperança em luz e nos iluminam, boicotando todas as trevas que nos anoiteciam."
"Mas que pena. Que pena estar aqui esta sombra de gente a fazer-me pensar que um dia também poderei ficar assim. Sozinho. A beber cafés para chamar o sono. Quem mora no avesso do mundo bebe cafés para adormecer. Como quem ouve uma história de embalar. Isso de beber café para acordar é mania de gente que tem tudo. Quem não tem nada inventa novos sentidos para tudo. Até para o café"
"Somos mudados pela vida que os outros nos dão. Pela vida que os outros são para nós. A fé da Rosa não eram orações nem palavras repetidas. A fé da Rosa era a vida dela e era com a vida que a Rosa rezava (e reza) quando se sentava ao pé de mim na Eucaristia. Era a vida dela que se ajoelhava e que me ajudava, a mim, a rezar e a ser melhor.
"É tempo de colocar feridas à mostra. É tempo de deixar que o sol, que é Jesus, nos aqueça até transformar as feridas em água fresca. Costumamos ter vergonha das nossas cicatrizes porque nos lembram as nossas feridas. As cicatrizes são um grito costurado de silêncio mas, ainda assim, um grito... Não há nada que esteja mais perto da alma e da pele do que a presença de uma ferida. De um golpe. Ou do desenho que resta dele. Somos a cruz de Jesus. Somos a coroa de espinhos. Somos a humilhação, a mágoa, a tristeza, o sofrimento acabado em infinito. É tremenda esta responsabilidade. Jesus vem rezar connosco esta verdade que nos une profundamente a todos: somos as feridas de Jesus. “Tu és a minha ferida”... Nunca te esqueças que foste (e és!) tu a ferida mais querida de Jesus. Ele colocou-te no Seu colo e, do alto da Cruz ensanguentada, ofereceu-te ao Pai".
"Ser feliz é não saber onde acabamos. É não ter fim, não ter pressa, não ter nada. É apreciar profundamente essa maravilha que é não ter nada. Não te mintas. Não me venhas dizer que tens tudo o que te faz falta e que não precisas de mais um bocadinho de nada. Se pensas assim, inverte o sentido da marcha. Mas inverte agora. Porque ser feliz é nunca ter tudo. Ser feliz é querer ser tudo. É sentir que ter uma vida só é pouco para tudo o que se quer ser e fazer."
"Somos um perigo quando, de repente, deixamos de ter medo. Sentimos que nada podem contra nós, nada nos derruba, nada nos falta. Temos tudo. Podemos tudo. Cuidado. Piso escorregadio. Curva apertada à esquerda. À direita. Em todas as direções. Somos um risco e um perigo quando o nosso coração deixa de bater... Achávamos que íamos voar e caímos. Somos o maior perigo. É quando achamos que podemos tudo que podemos perder tudo. E perder-nos. Deformamos o mapa que somos e arriscamos demais. Queremos viver a vida toda num segundo. Queremos valer a pena. De uma vez só. Queremos engolir a vida de um só trago e despedaçamo-nos. Depois, lá sacudimos as lágrimas dos joelhos, atamos os arranhões com cicatrizes e dizemos como quem se quer convencer: “o que não te mata faz-te andar. Levanta-te”
Fazer o bem é fazer a única coisa que está ao nosso alcance. Estamos enganados quando achamos que o bem dá trabalho. Fazer o bem dá menos trabalho do que fazer qualquer outra coisa. Não é uma opção: é uma maneira de estar e de viver. A verdadeira e única forma de escrever o bem na nossa vida é pensar que para além de tudo o que é mau, ainda podemos fazer o bem. Apesar de todos os apesares que nos pesam, há um colo que se ilumina perante a possibilidade de fazer o bem. E sabes que colo é esse? É o teu. Quando fazes o bem, apesar de todos os tudos, o teu colo fica maior. Aparece aos olhos dos outros como uma risquinha do colo do próprio Jesus. O Bem também faz arder, sim. Faz arder os impossíveis, as lutas, as mágoas, e todas as outras palavras que rimam com a palavra triste.
Quando não puderes fazer mais nada quanto a isto ou aquilo, faz o bem.
Quando não puderes ver nada de bom, faz o bem.
Quando não puderes fazer o bem, faz melhor."

06.01.17

VL – Vocação universal à felicidade

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       Desde a mais tenra idade que cada um de nós procura realizar-se como pessoa, chamando a atenção dos outros, primeiro dos adultos, enquanto crianças, adolescentes e jovens e, depois, sendo mais idosos, de toda a gente e especialmente dos mais novos. Precisamos de atenção, de cuidado e carinho, ao longo de toda a vida. Precisamos de ser vistos e reconhecidos e que nos tratem pelo nome próprio – a melhor música para os nossos ouvidos – e não apenas por um apelido ou por um título profissional. Queremos a atenção dos outros. Queremos sentir-nos amados, especiais, únicos.

       É um desejo inscrito no coração, no nosso ADN.

       Uma pessoa indisposta o tempo todo também quer sentir-se bem, também quer ser feliz. Mas por qualquer motivo, um desgosto, o feitio, ou porque só dessa forma se sente capaz de chamar a atenção dos outros, assume uma atitude de azedume ou de prepotência. No final, como dizemos dos adolescentes mais indisciplinados ou mais ativos, o que quer mesmo é chamar a atenção de alguém, ainda que o faça da pior maneira, já que destrói a amizade e os laços de proximidade.

       Como nos lembrava um professor do Seminário, não importa que falem bem ou mal de ti, importa é que falem de ti. Se falam mal já estão a dar-te importância, já contas para eles. Obviamente que quem não se sente não é filho de boa gente e ninguém quer ouvir dizer mal de si próprio. Mas entre dizerem mal e não dizerem nada…. Mais vale que digam alguma coisa!

       A felicidade que procuramos leva-nos a melhorar a nossa relação com os outros, procurando ser amados e reconhecidos. Por outras palavras, procuramos ser bem-sucedidos. Numa linguagem mais religiosa, o aperfeiçoamento da nossa vida, para nos tornarmos perfeitos como Deus Pai é perfeito. Não uma perfeição que distancia, um perfeccionismo viciante, mas uma perfeição que ama, que promove os outros, servindo-os e cuidando deles. É a vocação universal à santidade.

       A primeira vocação do cristão é seguir Jesus. Segui-l’O imitando-O, assimilando a Sua postura de vida, dando-Se por inteiro a favor dos outros. A santidade é transmutável com a felicidade. Daí se dizer que os santos já se encontram na bem-aventurança (= felicidade) eterna.

       A santidade não é póstuma. Póstuma apenas a declaração e o reconhecimento da santidade em vida. Com todos os que Deus colocou à nossa beira, começamos, aqui e agora, o trajeto da santidade, começamos a ser felizes, como caminho de realização que nos salva…

 
 
Publicado na Voz de Lamego, n.º 4385, de 1 de novembro de 2016

28.10.16

VL – A graça do palhaço – 1

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A conversa é como as cerejas. Começa e não sabemos quando acaba. Esta reflexão será um pouco assim. Por estes dias (1 de outubro) foi a sepultar na Paróquia de Santa Eufémia de Pinheiros, a D. Evinha, de onde era natural, a viver na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Tabuaço há mais de uma década. É daquelas pessoas que marcam um tempo, criam um espaço de afetos e de luz, deixam um rasto de bondade, de alegria e simplicidade.
A D. Evinha era cidadã do mundo, cristã em todos os momentos. Na Escola Diocesana de Formação Social acentuou um caminho de compromisso em Igreja que passou agora para a eternidade de Deus. Dos tempos da Ação Católica, as ganas de viver, de renovar a vida eclesial, com o Vaticano II, a sede de Deus e as novidades que iam chegando do Concílio. A formação superior na área da ação social, a passagem pelo ministério do trabalho e da solidariedade social, onde poderia fazer carreira, tendo optado por ajudar na promoção de outros, no país do Estado Novo e nos tempos da revolução, as reuniões cuidadosas para evitar a prisão de pais e mães de família, da aldeia à cidade, do norte à capital, ao Alentejo e ao Algarve, a vida consagrada no instituto de vida secular, com forte implantação em Espanha e na Améria Latina, o trabalho missionário/social/humano no Brasil e nos países vizinhos, dormindo em esteiras, comendo frugalmente, o contacto com a Teologia da Libertação e a perceção que a fé tem que estar ao lado dos mais pobres, dando-lhes ferramentas para que possam gerir as suas vidas…
Regressada do Brasil, fixando-se definitivamente em terras de Tabuaço, nunca desistiu de se empenhar, participando onde era necessário, na Igreja e na vida social e cultural. Sempre disponível, para mais oração, para mais formação, das crianças aos jovens e aos adultos, aos mais idosos, na catequese, nos grupos de jovens, como ministra extraordinária da comunhão, na vivência do Natal, da Páscoa, a cantar as Boas Festas, a visitar doentes, a dar conselhos com a delicadeza de uma mãe, preparando jovens para o crisma, intervindo nos tempos de formação, escrevendo, partilhando a vida, gastando-se… sempre ligada à vida da Igreja, sempre sintonizada com os sinais dos tempos.
Como Pároco pude usufruir da sua amizade e dos seus conselhos, da sua ajuda e das suas sugestões. Uma das sugestões, no início no meu ministério sacerdotal: as homilias deveriam terminar sempre de forma positiva, para que fosse autêntico o “assim seja”…
 
Publicado na Voz de Lamego, n.º 4381, de 4 de outubro de 2016

28.10.16

VL – A graça do palhaço – 2

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A D. Evinha (1924-2016), natural da Paróquia de Santa Eufémia de Pinheiros, a viver em Tabuaço, numa vida dedicada aos outros, inserida na vida pastoral da Igreja, comprometida em viver e comunicar o Evangelho, sugeriu-me várias leituras, como por exemplo de José António Pagola. Outra leitura que me aconselhou foi a “A graça do Palhaço” (La gracia en el clown) e “Os palhaços” (Los clowns). Deixamos para a discussão académia as diferenças que podem ser estabelecidas entre “palhaços” e “clowns” (termo inglês, numa evocação mais erudita).
A autora é docente de teatro, Cristina Moreira, oriunda da Argentina, bailarina e atriz, tendo-se fixado na Europa, integrando companhias de teatro, escrevendo peças… O seminário dedicado aos palhaços é o mais festivo. O objetivo do palhaço é fazer rir o público. Começa aqui o ensinamento para cada um de nós. Ser palhaço para os outros. Agir pelos outros. Fazer rir está intimamente ligado ao amor. Exige muito, exige tudo do palhaço, entrega intensa que se sujeita a ser aceite ou recusado. Com docilidade o palhaço procura construir uma relação com o público. “O amor está implícito no desejo de comunicar a alegria de estar com os outros… a graça emana da entrega espiritual ao outro”.
Um ator representa, seguindo um guião. O palhaço representa-se. Ele procura reconstruir a partir de si uma nova personagem. Elabora o seu guião interagindo com a sua audiência. Ao longo do processo vai aprimorando a sua habilidade, o seu carácter, a sua fisionomia. Não é a vestimenta, a caracterização física que distingue os palhaços, mas a capacidade de mostrar-se com as próprias fraquezas, oferecendo-se à audiência, sempre num prisma de humildade. Serve os demais, sujeita-se aos seus juízos e, o que preparou com esmero, pode falhar.
Sublinha a autora que “a graça no intérprete nasce do reconhecimento da própria limitação, de um estado de humildade diante do verdadeiramente eterno. No momento em que o homem se pode rir de si mesmo, não se levando a sério… encontra um estilo solto para olhar a sua vida. Esta liberdade permite-lhe fazer rir os demais”.
O palhaço avança a partir do nada, que é muito, que é tudo, avança a partir do seu interior, dando o melhor de si, expondo-se, colocando a nu as suas inseguranças, os seus medos, procurando ultrapassar os seus dilemas. O palhaço é um homem real com os seus contratempos. Dessa forma se sintoniza com o seu público, com as suas debilidades, desafiando-os a rir-se de si mesmos, levantando-se para a luta.
 
Publicado na Voz de Lamego, n.º 4382, de 11 de outubro de 2016

28.10.16

VL – A graça do palhaço – 3

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A graciosidade do palhaço é tanto maior quanto mais se entrega, quando mais se dá aos outros. A sua graça depende da resposta do público, das pessoas para quem atua.
Ele tem a preocupação de pôr a audiência a rir. E nada melhor que expor os seus próprios problemas. Procurar o palhaço que há em si mesmo, descobrir-se com as suas inseguranças e medos, com as suas debilidades e angústias. A verdade entra na equação. Quanto mais autêntico, quanto mais ele mesmo, apanhado em flagrante delito de debilidade, mais gracioso será. A arte de ser palhaço engloba toda a sua vida, fazendo sobressair a inocência que existe no mais fundo de si mesmo. Aceita o fracasso, o seu fracasso, para promover o outro, colocando o espectador em estado de superioridade. “Através desse fracasso, o palhaço revela a sua profunda natureza humana que nos emociona e nos faz rir” (Cristina Moreira).
Com o palhaço aprendemos a ser para os outros e com os outros. O palhaço tem um contacto direto com o público, está sob o olhar dos outros. Não se faz palhaço diante do público. Atua com o público, interage com todas as pessoas do público e as reações das mesmas influenciam a sua atuação. 
Com efeito, “o importante não é o palhaço em si mesmo. O essencial é o olhar que recebe dos outros a quem dedica a sua vida”, procurando “converter o pesado em leve, o amargo em doce, o oculto em verdadeiro… Deve buscar para a sua personagem um estado de inocência, de frescura, de ingenuidade, de onde olhar a vida… é um peregrino que segue uma estrela, que crê na sua verdade e se sente solvente em comunicar-se na mensagem…”
Tal como o palhaço também nós queremos ser reconhecidos, amados, queridos…
O palhaço conta-se a si mesmo. Por isso a sua vida interior tem tanto que ver com a sua atuação. “O palhaço não existe separado do autor que o interpreta. Todos somos palhaços, todos nos julgamos bonitos, inteligentes e fortes, mas na realidade, cada um de nós tem as suas debilidades, o nosso lado ridículo, que, quando se manifesta, fazem rir”
Ele, como nós, busca o amor de alguém, o reconhecimento do público. O que faz é para agradar, para divertir as pessoas. Incorpora, por imitação, tudo o que admira e reprodu-lo com afeto. A ilusão de superar as limitações do tempo e do espaço, com criatividade e imaginação. Faz-nos desejar pertencer a um mundo melhor… 
 
Publicado na Voz de Lamego, n.º 4383, de 18 de outubro de 2016

28.10.16

VL – Deslizar na vida como no tango

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Somos diferentes. No corpo e na mente. Lidar com os sentimentos e com os infortúnios. Diferentes a amar e a deixar-nos amar. Por vezes complicamos as situações mais simples e desvalorizamos o que tem de essencial. O essencial, como nos lembra Antoine de Saint Exupéry, no Principezinho, é invisível aos olhos, radica no coração, que tem razões, segundo Pascal, que a razão desconhece.
Para nós cristãos, a referência é Jesus Cristo: a docilidade à voz do Pai, a delicadeza para com todos, o gastar a vida até à última gota de sangue em benefício da humanidade, transparecendo a misericórdia do Pai, envolvendo-nos como irmãos… É um desafio e um compromisso. Dá-nos as ferramentas para nos descobrirmos como filhos do mesmo Pai e nos assumirmos, em definitivo, como irmãos.
No início, Caim não compreendeu que a fraternidade o humanizava. E matou o seu irmão. Quando as coisas não nos correm bem, sobretudo na relação com as pessoas que amamos, e seguindo a tendência do tempo, desistimos. Parece ser mais fácil voltar as costas aos problemas. Ou eliminar aqueles que consideramos rivais. Infelizmente não são apenas palavras. Cinco minutos de notícias e quantas quezílias que dão em violência e em morte!
Vivendo ao jeito de Jesus, Rosto e Presença da Misericórdia do Pai, vivamos nós também predispostos a dar/gastar a vida pelos outros, pela família, pelos amigos, pelos vizinhos, por aqueles de quem não gostamos tanto. Deslizar pela vida como no tango.
No tango, cada um dança em função do outro, deslizando de encontro ao seu corpo, a sua agilidade, segurando o outro, e ao mesmo tempo confiando e por isso deixando-se cair, deslizando, procurando sintonizar cada movimento, escutando a música, mas sobretudo a melodia do outro. São dois. Não um. Dois mas que quase se fundem como em um. A identidade de cada um. A agilidade de cada um. Cada um tem que conhecer os movimentos do outro, as possibilidades, limites. Até onde pode ir e onde não chega. Esforço, dedicação, treino, diálogo. Alguns atropelos. Recomeços. Voltar a tentar uma e outra vez, sem desistir, até que os passos e movimentos estejam de tal modo sintonizados e sincronizados que quem vê de fora lhe pareça natural e para os próprios extravase alegria, num diálogo de corpos, de emoções, centrando-nos no outro, no olhar, nas nuances, prevendo algum deslize ou alguma alteração, para se adaptar, corrigindo movimentos, para amparar o outro ou se deixar ir.
E no tango, como na vida, precisamos do outro.
 
Publicado na Voz de Lamego, n.º 4378, de 13 de setembro de 2016

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