SVETLANA ALEKSIEVITCH - O fim do Homem Soviético
SVETLANA ALEKSIEVITCH (2015). O fim do Homem Soviético. Um tempo de desencanto. Porto: Porto Editora. 472 páginas.
Quando um/a escritor/a é considerado/a Nobel da Literatura logo desperta a atenção de milhares de leitores em todo o mundo. Por vezes essa atribuição reconhece autores já consagrados, outras vezes autores desconhecidos do grande público, mesmo que sejam considerados no meio literário, ou numa região do globo.
Como leitor estou sempre à espera que Haruki Murakami receba esta distinção, tal é, a meu ver, a criatividade, imaginação, as histórias que se multiplicam dentro de outras histórias, além da ponte entre a cultura ocidental, com as suas tradições, superstições, descobertas, tendência e a cultura oriental, nipónica sobretudo, mas abrangendo costumes e tradições e superstições do mundo oriental, com a sua história ancestral. Esta seria uma mais valia para lhe poder ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Mas pelos vistos o Júri ainda não é dessa opinião.
O Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a esta escritora, Svetlana Alexksievitch e certamente por mérito próprio, tal é, como este livro que agora sugerimos como leitura, a arte com que escreve e, como muitos outros autores que receberam esta distinção, o seu contributo para conhecermos a Rússia e todo o mundo soviético, a passagem de um império para uma república mas que quer continuar a impor-se como superpotência mundial.
O fim do Homem soviético (ou "O tempo em segunda mão" - título original traduzido à letra) faz parte de um quinteto, em que a autora escuta testemunhos de pessoas reais, em diferentes contextos, do mundo soviético, em que vem ao de cima sobretudo o desencanto, o vazio, a indefinição. As promessas de liberdade e de democracia defraudaram as expectativas e aqueles que foram para a rua manifestar-se desiludiram-se, os heróis das guerras travadas pela União Soviética, nomeadamente no Afeganistão chegaram a ser considerados assassinos, sem honra e sem causas para lutar. O desmoronar da URSS, com a independência dos diversos Estados que a constituíam trouxeram muitas dúvidas. Milhares de pessoas que cresceram num império, estudaram a sua história, cultura, tradições, e de repente estão uns contra outros por que agora pertencem a países diferentes.
A liberdade aplaudida não cumpriu as promessas de uma mundo melhor, em que todos pudessem desfrutar das potencialidades europeias e norte-americanas. As calças de ganga não trouxeram a felicidade. A miséria era imensa, mas todos viviam com dificuldades, com o advento da democracia, muitos enriqueceram, controlando a riqueza, e os que viviam na miséria perderam até o que tinham, continuaram a ser explorados e espoliados dos seus bens.
Terá valido a pena a revolução? A perestroika? Alguns ainda olham com esperança para este tempo, a maioria parece viver na nostalgia de uma passado mais ou menos glorioso. Por conseguinte, na atualidade, Putin pareça estar a recuperar o imperialismo e a ditadura, sem oposição de relevo.
É um livro extraordinário. Permite conhecer a alma russa e soviética. Parecem ser palavras de desencanto, mas que correspondem ao pulsar de centenas de pessoas entrevistadas pela autora. Histórias que nos fazem sentir dentro daquele contexto, daquele momento da História, ainda que estejamos à distância, temporal e culturalmente. O livro é um desafio, para percebermos melhor as diferenças dos mundos que compõem o mundo. Questões de humanidade e de fé e de poder e de controlo, de riqueza e exploração.
Como refere a autora, na entrevista que aparece no final do livro, foram cinco livros "vermelhos", daquele tempo de transição, em que os revolucionários saíram sem pátria nem identidade e muitas vezes crucificados aos ideais comunistas, um socialismo que não protegeu os seus. Findo este ciclo, a autora escreverá sobre o amor, a velhice, a morte, mas num registo diferente, pois também há esperança e há muitas pessoas otimistas.
Para quem goste de ler, é um livro que se lê de fio a pavio, histórias dentro da história, envolventes, com todos os ingredientes de uma realidade que se vive naquela zona do planeta, mas em tudo idênticas as outras vidas a a outras histórias vividas por muitos que sonharam um mundo novo e acordaram sem o mundo antigo e sem se sentirem parte integrante do mundo que entretanto chegou e que eventualmente ajudaram a construir. Nem pão nem liberdade. Pois liberdade sem ter que comer, sem casa nem trabalho, nem que vestir de pouco vale.