Agência Ecclesia – Como era o jovem Jacinto quando andava na escola?
D. Jacinto Botelho – A minha mãe era professora, mas nunca me deu aulas. Na altura existiam as escolas masculina e a feminina. Como era filho de uma professora existia algum respeito, mas sempre com proximidade.
AE – E as brincadeiras da época?
JB – Gostava muito de brincar com os meus irmãos. Não faltavam brincadeiras que pudéssemos realizar.
AE – Foi aí que nasceu a sua vocação?
JB – Nasceu na altura da Escola Primária. Chamo-me Jacinto porque nasci no dia de S. Jacinto e porque o pároco da minha freguesia se chamava Jacinto. Um padre que marcou as pessoas da altura. Recordo-me que ele próprio se ofereceu para meu padrinho de Baptismo. A relação com o pároco e outros sacerdotes que passavam lá por casa ajudou na minha descoberta vocacional. Eram outros tempos...
AE – Recorda-se bem desse tempo?
JB – Perfeitamente. Passaram, na minha casa, muitos sacerdotes que tiveram um papel muito significativo na minha vocação.
AE – Entrou em que seminário?
JB – Fui com dez anos para o Seminário de Resende e, posteriormente, para o Seminário Maior de Lamego.
AE – Neste percurso vocacional nunca teve indecisões?
JB – Durante a minha vida tive momentos em que a vontade de avançar para adiante eram mais fortes. Noutras, sentia que a vontade não era assim tão manifesta. Tive momentos de indecisão, mas felizmente tudo isso foi vencido e superado. Estes passos fazem parte de um discernimento que necessitamos de fazer.
AE – Qual foi o seu mestre espiritual?
JB – No Seminário Menor de Resende foi um sacerdote muito piedoso. No Seminário de Lamego foi um sacerdote que, depois, foi bispo de Leiria-Fátima, D. Alberto Cosme. Na altura era director espiritual do Seminário Maior de Lamego.
AE – O que bebeu concretamente desses mestres?
JB – Muita sabedoria e uma profunda espiritualidade.
AE – Não esquecendo que eram tempos difíceis. Vivíamos em ditadura e a Europa estava em pedaços com o pós II Guerra Mundial.
JB – É verdade. Entrei no Seminário em 1946 e fui ordenado doze anos depois. Foram tempos difíceis mesmo do ponto de vista material.
AE – Fome?
JB – Fome, propriamente, não digo, mas foi o tempo do racionamento. As pessoas compravam géneros alimentícios através de senhas. Depois fazia-se a distribuição às pessoas mediante aquela senha. Tempos difíceis...
AE – Andava descalço?
JB – Não andava, mas muitos companheiros meus andavam descalços.
AE – Estes tempos deixaram-lhe marcas?
JB – Cresci naquele ambiente. Em minha casa assinava-se o jornal «Novidades». A Rádio não era tão divulgada como hoje, no entanto habituei-me a ouvir as notícias: o avanço dos Aliados (II Guerra Mundial). Estes já estão a tantos quilómetros de Berlim... Acontecimentos que me marcaram. Não vivíamos em clima de guerra, mas com uma certa preocupação.
AE – Os seus pais eram assinantes do jornal «Novidades». Uma forma de evangelizar através da Comunicação Social?
JB – Apesar de chegar com algum atraso, foi um instrumento muito útil de evangelização familiar. Era lido e apreciado. Aquilo que o jornal dizia – era, de certo modo, a voz das pessoas ligadas à Igreja – era absorvido. Serviu para formar os meus pais, a mim e aos meus irmãos.
AE – Sem esquecer que na altura existia a censura.
JB – Eu não colocava esse problema.
AE – Sendo da região do Douro, não ajudavam nos trabalhos agrícolas?
JB – Às vezes acompanhava o meu pai nas idas aos campos para contactar com os nossos assalariados. Gostava de ver os trabalhos agrícolas. Era um tempo de aprendizagem.
Sacerdote
AE – Passado esse tempo da juventude, foi ordenado sacerdote para a diocese de Lamego.
JB – Fui ordenado no ano em que morreu o Papa Pio XII (1958). De seguida fui estudar para Roma – na Universidade Gregoriana – para preparar-me em História Eclesiástica. Recordo, perfeitamente, da eleição do Papa João XXIII. Começou a ter novas formas de contacto com as pessoas e muito próximo da gente de Roma. Uma vez foi à universidade onde eu estava como aluno e mostrou muita proximidade.
AE – E anunciou, no início do seu pontificado, o II Concílio do Vaticano.
JB – O anúncio aparece logo após a realização do Sínodo de Roma que deixou muita exigência em várias áreas da Igreja. Na altura do Concílio, eu já não estava em Roma, já tinha acabado os estudos.
AE – Passados quarenta anos deste grande acontecimento eclesial, não estamos ainda atrasados na sua aplicação?
JB – Em muitas coisas estamos. Até mesmo na consciência de sermos membros da Igreja. Na consciência de um laicado responsável e coerente. Temos de continuar a lutar, não para um novo concílio, mas para que este se consiga implantar em todos os meios.
AE – Nota-se que sente nostalgia de João XXIII.
JB – Era uma Papa muito simpático e muito próximo. Assisti à sua eleição e estava na Praça de S. Pedro quando apareceu fumo branco. Contemplei com os meus olhos esta realidade. Vibrei com aquele acontecimento.
AE – Depois da sua formação em História Eclesiástica voltou para a diocese que o viu nascer.
JB – Vim para o Seminário. Fazia parte da equipa formadora como reitor e bastante mais tarde assumi a responsabilidade do Seminário. Depois fui Vigário Episcopal para os Leigos, Vigário Geral-Adjunto e Vigário Geral. Também fui pároco.
AE – A questão dos leigos e da família sempre foi uma preocupação da sua parte?
JB – Sempre foi uma preocupação que tive. João Paulo II dizia que uma autêntica pastoral da Igreja tem de ser uma pastoral familiar.
AE – Apesar da formação em História nunca exerceu a actividade docente?
JB – Fui professor de história eclesiástica no seminário. Nos estudos escolhi a parte moderna da história.
AE – Nunca se dedicou à investigação?
JB – Em Roma, sim. Em Portugal, não.
AE – Perdeu-se um padre professor e ganhou-se um padre pastor.
JB – É a realidade da vida.
Bispo
AE – Até que foi nomeado para bispo-auxiliar de Braga. Recorda-se desse momento?
JB – Perfeitamente. Era bispo desta diocese, D. Américo Couto de Oliveira. Um dia, estava a dar uma aula no Seminário e recebo uma notícia a pedir-me para ir falar com certa urgência com D. Américo. Após a aula, passei pelo Paço Episcopal e D. Américo disse-me que a Nunciatura precisava de saber, até amanhã de manhã, a minha resposta porque o Papa tinha-me nomeado para bispo-auxiliar de Braga. Fiquei muito ansioso...
AE – E refugiou-se em oração?
JB – Passei por um convento dominicano de clausura e pedi-lhes: há uma intenção de responsabilidade que recomendava à oração das irmãs.
AE – E nasceu o sol do dia seguinte...
JB – Recordo-me que quando cheguei ao Paço Episcopal, D. Américo já tinha recebido um telefonema da Nunciatura a perguntar pela resposta. Dei o meu sim com serenidade.
Fui ordenado a 20 de Janeiro de 1996, festa do nosso padroeiro, S. Sebastião.
AE – E partiu para Braga.
JB – Estive lá quatro anos. Foi uma experiência muito rica.
AE – A escola episcopal?
JB – Todos foram excelentes professores. Trabalhávamos em equipa.
AE – Depois voltou às suas raízes?
JB – É verdade. Sinto-me acarinhado por estas gentes.
AE – Mas existem dificuldades pastorais?
JB – É uma zona marcada pela interioridade e pela emigração. Este processo migratório voltou novamente. As pessoas válidas, do ponto de vista físico e intelectual, procuram noutros lugares o meio para singrar na vida. Há um envelhecimento cada vez mais acentuado.
AE – Perante este cenário, conclui-se que a Igreja de Lamego evangeliza, essencialmente, a terceira idade.
JB - É verdade. É uma pastoral de terceira vida.
AE – O que fazer para estancar estes fluxos migratórios?
JB - São necessários investimentos, mas também não podemos esquecer que esta região é essencialmente rural.
AE – E o turismo duriense?
JB – A riqueza turística é impar. É um rio que serpenteia os montes. Temos também um rico património artístico.
AE – Não esquecendo os mosteiros abandonados?
JB – Há uma vontade para recuperar estes mosteiros. Não para voltarem a serem mosteiros, mas para instâncias turísticas.
AE – A desertificação humana preocupa-o, mas disse, recentemente, que gostava que os seus leigos dessem a cara. Eles não dão a cara por estes problemas?
JB – Muitos não podem dar a cara porque têm uma certa idade. É fundamental políticas de valorização desta zona.
AE – O D. Jacinto Botelho é um bispo de gabinete ou de andar na rua?
JB – A vida de um bispo é estar em contacto com as comunidades. Gosto de estar próximo das pessoas.
AE – Nas celebrações dos seus 50 anos de sacerdócio recebeu do município de Moimenta da Beira a «chave de ouro». Ouro sacerdotal com chave de ouro?
JB – O ouro é o símbolo da fidelidade. Oxalá termine com a chave de fidelidade.