40. "De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens"
"De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens".
Esta é uma expressão de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, durante o Estado Novo, e que foi exilado por posições públicas e contrárias à corrente dominante. A expressão foi colocada no Seminário de Vilar, Diocese do Porto.
Esta expressão fala de algo de muito importante que já trouxemos aqui. Só Deus é Deus e só Deus há de ser tratado como tal. Os homens, da mesma carne, do mesmo sangue, da mesma natureza, hão de ser tratados como homens. Com a mesma dignidade, como iguais. Por baixo da pele somos todos mais iguais. Não há lugar para a idolatria, considerando que alguém é mais. Na QUINTA, os animais são todos iguais, mas como dizem os porcos, uns mais iguais que outros.
Nessa fábula, sobrevém a vivência concreta, em que a proclamação da liberdade, da igualdade e da fraternidade, não corresponde depois a uma prática quotidiana e universalizada. Todos iguais, mas uns têm mais privilégios, mais regalias, uns são filhos e outros enteados, uns protegidos e outros escorraçados.
Talvez D. António se referisse a algo mais concreto, como por exemplo as pessoas não se subjugarem ao poder instalado do Estado Novo, mas só a Deus subjugariam a própria vontade, pois só Ele é digno de adoração.
Em todo o caso, a expressão é muito mais rica do que uma apropriação história (ainda que justificável). Cada pessoa é imagem e semelhança de Deus, é rosto de Jesus Cristo. Há de ser tratada com dignidade, com respeito. Daí também a insistência na defesa da vida desde a sua concepção até à sua morte natural. Só Deus é o Senhor da vida e da Morte, do Tempo e da História. Subjugar o outro aos meus caprichos, é diabólico. Destrói, conduz à morte. Sempre que alguém, ou alguma ideologia, assumiu o papel de Deus, aconteceram desgraças, destruição e violência em massa.
O outro é irredutível a mim. É totalmente outro. É imagem, rosto do OUTRO (divino). Não pode ser enSImesmado, isto é, não pode ser reduzido ao MESMO, porque é outro, não se dilui em mim. O rosto do outro tem inscrito em si o mandamento: NÃO MATARÁS. O filósofo francês Emmanuel Levinas é categórico e inequívoco. O outro irrompe na minha vida como um apelo, como desafio, como provocação. Não se reduz a mim... é outro.
Num ambiente cristão, por maioria de razão. O outro é lugar tenente de Deus. Amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. É o primeiro e o segundo mandamento. Não são separáveis. Valemos mais que todos os passarinhos que Deus abriga e protege. Amar a Deus implica amor ao nosso semelhante. Implica, como lembra Immanuel Kant, outro filósofo, tratar o outro sempre como um fim, e nunca como meio, como instrumento.
Obviamente, como havemos de aprofundar, colocar-nos de joelhos numa atitude de serviço e de dedicação ao nosso semelhante não é recusar ou viver indignamente, mas é uma outra forma, a de Jesus Cristo, de viver a caridade na sua plenitude, de quem se predispõe a dar a vida pelo outro, estendendo as mãos, dando a outra face. Mas uma perspetiva não anula a outra.
Hoje o desafio é tratar a todos sem fazer aceção, ainda que saibamos que na prática nem sempre é fácil, uma vez que a nossa afinidade não é por todos igualmente. Por outro lado, tratar a todos por igual não significa tratar a todos do mesmo modo. Ou seja, para promover a igualdade é necessário tratar cada um o melhor possível, respeitando-o como pessoa, na sua individualidade, na sua identidade própria.
Quando tratamos todos da mesma forma, corremos o risco da indiferença, da generalização, da impessoalidade, as pessoas deixam de ter rosto para nós, são todas iguais, no bem e no mal. É um fato igual para todos. Deus ama-nos como somos, chama-nos pelo nome, ama-nos com os nossos defeitos e com as nossas qualidades. Como cristãos, propunhamo-nos acolher cada pessoa com as suas necessidades e com as suas características, no compromisso pelo bem, no caminho da santidade.
Sublinhe-se, no entanto, tratar cada um como pessoa, ser único e irrepetível, mas com igual dignidade. Todos somos filhos, irmãos em Jesus Cristo, ou irmãos na mesma humanidade. Igualdade de oportunidades, no justo respeito pela identidade de cada pessoa, ou cada grupo de pessoas.
Nem sempre será fácil o justo equilíbrio... não deixemos de tentar!